quinta-feira, 3 de março de 2016

Ana, de 26 anos, consultora portuguesa a viver há dois anos no Brasil, nunca esquece o choque que sentiu quando chegou e percebeu que tudo, fosse que valor fosse, podia ser pago a prestações: «Lembro-me de ir a um supermercado comprar só uma garrafa de água e a senhora da caixa perguntar se queria pagar com crédito ou débito? A conta era de apenas dois reais [cerca de 46 cêntimos]».
As prestações são, aliás, uma imagem de marca no país e também o principal problema das famílias. Muitas vezes, o crédito é a única forma de conseguirem fazer compras: «Na rua é possível negociar um desconto, caso o pagamento seja feito em dinheiro, porque aqui as pessoas podem comprar tudo com crédito e muitas não têm dinheiro para contrariar a tendência», explica.
O problema é que as famílias foram ficando endividadas e agora, com o agravamento da crise, as taxas de juro dos cartões de crédito, dependendo da instituição, podem chegar a quase 1000% ao ano. António, de 56 anos, a viver há vários anos no país, já não consegue imaginar uma realidade diferente: «Aqui, o ‘pagamento parcelado’ é o dia a dia das pessoas. Não imagino como seria se tudo mudasse. Acredito que estaríamos perante um cenário de desespero total».
Preços aumentam
Em janeiro foi anunciado um novo aumento da chamada cesta básica na maioria das cidades brasileiras. No Rio de Janeiro, este conjunto de alimentos – que inclui carne, arroz, leite, farinha, batata, tomate, pão, fruta, entre outros – aumentou 12,6%. Um aumento justificado principalmente pelo elevado preço do tomate, da batata e da banana.
De acordo com uma análise do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconómicos (Dieese), um trabalhador que viva nesta cidade precisa agora de trabalhar 112 horas e um minuto, em média, com base no ordenado mínimo nacional de 800 reais (183 euros), para comprar os alimentos da cesta básica. São quase três semanas de trabalho num mês. Segundo o Diesse, o salário mínimo teria de ser quatro vezes superior ao atual para que uma família de quatro pessoas pudesse fazer face ao aumento no preço dos alimentos e a outros tipos de despesas.
Márcia, de 34 anos, vive em Portugal, mas todos os anos passa temporadas no norte do Brasil, onde tem casa. Jornalista de profissão, admite que os tempos mudaram: «Lembro-me de ir ao supermercado, em 2007, e de pagar um real por dez laranjas. Agora, se gastar só um real, trago apenas três».
O Brasil tem vivido dificuldades económicas com a queda do preço do petróleo, uma das principais exportações do país, e os casos de corrupção, que têm minado a confiança dos agentes económicos.
De acordo com a imprensa brasileira, a concessão de crédito caiu 13%,em 2015, por causa do aumento dos juros e do crédito malparado. Um problema que se soma à crescente falta de trabalho.
A taxa de desemprego do Brasil subiu em janeiro para 7,4%, a maior registada desde 2009, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgados esta semana. A população desempregada no mês passado era de 1,9 milhões de pessoas, aumentando 42,7% em relação a janeiro de 2015.
Para João, um português a viver em São Paulo há vários anos, o clima é de grande preocupação. «Nem todos têm acesso à carteira de trabalho, que é o que dá acesso ao subsídio de desemprego, por exemplo. E, claro, que uma das preocupações é o aumento da violência e dos roubos. Tenho câmaras de segurança na minha casa e já me roubaram três, em dias diferentes, para ver se conseguem entrar», explica.
Mais roubos este ano
A verdade é que, de acordo com o anuário brasileiro de 2015, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), a taxa de homicídios atingiu 26,3 por 100 mil habitantes em 2014, colocando o Brasil entre os 20 países mais violentos do mundo. Em média, houve um homicídio a cada dez minutos.
Já dados referentes ao início de 2016 apontam para um decréscimo dos homicídios e de um forte aumento dos roubos. «Claro que a segurança passa a ser uma das preocupações. As pessoas não têm dinheiro e muitas têm filhos», confidencia Maria, outra portuguesa a trabalhar em São Paulo, na aérea da hotelaria.
Ao SOL, Marina, de 28 anos, explica que o agravamento da crise já se começa a sentir em alguns aspetos do dia a dia: «Nas áreas operacionais, há muita gente a ser demitida e muitas fábricas a fechar. Falo muito com taxistas, que me dizem que nesta área também houve uma queda de 30% nas viagens porque, hoje em dia, as pessoas pensam duas vezes antes de se meter num táxi. Mas é preciso ter atenção porque as situações não são todas iguais. Infelizmente, a desigualdade social neste país é enorme e muito visível. Cada vez mais».Brasil: um país a prestações

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